segunda-feira, 23 de março de 2020

ERRO DE DESCARTES (um resumo do capítulo)

 

DAMÁSIO, Antonio. O Erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 1996 [Dados eletrônicos]

Advertência: decisões sensatas provêm de uma cabeça fria e de que emoções e razão se misturam tanto quanto a água e o azeite. Hábito: os mecanismos da razão existiam numa região separada da mente onde as emoções não estavam autorizadas a penetrar e, quando pensava no cérebro subjacente a essa mente, assumia a existência de sistemas neurológicos diferentes para a razão e para a emoção. Perspectiva largamente difundida acerca da relação entre razão e emoção, tanto em termos mentais como em termos neurológicos.
Um amigo, uma lesão afetada por uma doença neurológica que danificou um setor específico do cérebro, originando, de um dia para o outro, essa profunda deficiência na capacidade de decisão. Os instrumentos habitualmente considerados necessários e suficientes para um comportamento racional encontravam-se intatos. Ele possuía o conhecimento, a atenção e a memória indispensáveis para tal; a sua linguagem era impecável; conseguia executar cálculos; lidar com a lógica de um problema abstrato. Apenas um outro defeito se aliava à sua deficiência de decisão: uma pronunciada alteração da capacidade de sentir emoções. [...] Ou seja, a emoção era um componente integral da maquinaria da razão. [...] Ou seja, de novo, uma observação cotidiana, uma pista numa hipótese testável.
Proposta: a razão pode não ser tão pura quanto a maioria de nós pensa que é ou desejaria que fosse, e que as emoções e os sentimentos podem não ser de todos uns intrusos no bastião da razão, podendo encontrar-se, pelo contrário, enredados nas suas teias, para o melhor e para o pior.
É provável que as estratégias da razão humana não se tenham desenvolvido, quer em termos evolutivos, quer em termos de cada indivíduo particular, sem a força orientadora dos mecanismos de regulação biológica, dos quais a emoção e o sentimento são expressões notáveis. Além disso, mesmo depois de as estratégias de raciocínio se estabelecerem durante os anos de maturação, a atualização efetiva das suas potencialidades depende provavelmente, em larga medida, de um exercício continuado da capacidade para sentir emoções.
Não se pretende negar com isso que as emoções e os sentimentos podem provocar distúrbios destrutivos nos processos de raciocínio em determinadas circunstâncias. O bom senso tradicional ensinou-nos que isso acontece na realidade, e investigações recentes sobre o processo normal de raciocínio têm igualmente colocado em evidência a influência potencialmente prejudicial das emoções. É, por isso, ainda mais surpreendente e inédito que a ausência de emoções não seja menos incapacitadora nem menos suscetível de comprometer a racionalidade que nos torna distintamente humanos e nos permite decidir em conformidade com um sentido de futuro pessoal, convenção social e princípio moral.
Tampouco se pretende afirmar que, quando têm uma ação positiva, as emoções tomam as decisões por nós ou que não somos seres racionais. Limito-me a sugerir que certos aspectos do processo da emoção e do sentimento são indispensáveis para a racionalidade. No que têm de melhor, os sentimentos encaminham-nos na direção correta, levam-nos para o lugar apropriado do espaço de tomada de decisão onde podemos tirar partido dos instrumentos da lógica. Somos confrontados com a incerteza quando temos de fazer um juízo moral, decidir o rumo de uma relação pessoal, escolher meios que impeçam a nossa pobreza na velhice ou planejar a vida que se nos apresenta pela frente. As emoções e os sentimentos, juntamente com a oculta maquinaria fisiológica que lhes está subjacente, auxiliam-nos na assustadora tarefa de fazer previsões relativamente a um futuro incerto e planejar as nossas ações de acordo com essas previsões.
Sugestão: a razão humana depende não de um único centro cerebral, mas de vários sistemas cerebrais que funcionam de forma concertada ao longo de muitos níveis de organização neuronal. Tanto as regiões cerebrais de “alto nível” como as de “baixo nível”, desde os córtices pré-frontais até o hipotálamo e o tronco cerebral, cooperam umas com as outras na feitura da razão.
Os níveis mais baixos do edifício neurológico da razão são os mesmos que regulam o processamento das emoções e dos sentimentos e ainda as funções do corpo necessárias para a sobrevivência do organismo. Por sua vez, esses níveis mais baixos mantêm relações diretas e mútuas com praticamente todos os órgãos do corpo, colocando-o assim diretamente na cadeia de operações que dá origem aos desempenhos de mais alto nível da razão, da tomada de decisão e, por extensão, do comportamento social e da capacidade criadora. Todos esses aspectos, emoção, sentimento e regulação biológica, desempenham um papel na razão humana. As ordens de nível inferior do nosso organismo fazem parte do mesmo circuito que assegura o nível superior da razão.
É fascinante encontrar a sombra do nosso passado evolutivo no nível mais distintivamente humano da atividade mental, embora Charles Darwin já tivesse antevisto o essencial dessa descoberta ao escrever sobre a marca indelével das origens humildes que os seres humanos exibem na sua estrutura corporal. Contudo, a dependência da razão superior relativamente ao cérebro de nível inferior não a transforma em razão inferior. [...] O que pode mudar é a nossa perspectiva acerca da maneira como a biologia tem contribuído para a origem de certos princípios éticos que emergem num determinado contexto social, quando muitos indivíduos com uma propensão biológica semelhante interagem em determinadas circunstâncias.
A emoção é o segundo tema central deste livro. Tema escolhido pela necessidade, ao procurar entender a maquinaria cognitiva e neurológica subjacente à razão e à tomada de decisões. Por isso, uma segunda ideia presente no livro é a de que a essência de um sentimento (o processo de viver uma emoção) não é uma qualidade mental ilusória associada a um objeto, mas sim a percepção direta de uma paisagem específica: a paisagem do corpo. [...] Os sentimentos não são tão intangíveis quanto se supunha. Pode-se circunscreve-los em termos mentais, e talvez encontrar também o seu substrato neurológico.
Neste sentido, emoções e sentimentos incluem não só o sistema límbico, uma ideia tradicional, mas também alguns dos córtices pré-frontais do cérebro e, de forma mais importante, os setores cerebrais que recebem e integram os sinais enviados pelo corpo.
Concebo a essência das emoções e sentimentos como algo que podemos ver através de uma janela que abre diretamente para uma imagem continuamente atualizada da estrutura e do estado do nosso corpo. Se imaginarmos a vista dessa janela como uma paisagem, a “estrutura” do corpo é o análogo das formas dos objetos espacialmente dispostos, enquanto o “estado” do corpo se assemelha à luz, às sombras, ao movimento e ao som dos objetos nesse espaço. Na paisagem do seu corpo, os objetos são as vísceras (coração, pulmões, intestinos, músculos), enquanto a luz e a sombra, o movimento e o som representam um ponto na gama de operações possíveis desses órgãos num determinado momento. Em termos simples, mas sugestivos, o sentimento é a “vista” momentânea de uma parte dessa paisagem corporal. Tem um conteúdo específico — o estado do corpo — e possui sistemas neurais específicos que o suportam — o sistema nervoso periférico e as regiões cerebrais que integram sinais relacionados com a estrutura e a regulação corporal. Dado que o sentir dessa paisagem corporal é temporalmente justaposto à percepção ou recordação de algo que não faz parte do corpo — um rosto, uma melodia, um aroma —, os sentimentos acabam por se tornar “qualificadores” dessa coisa que é percebida ou recordada.
A partir das emoções, o corpo entra numa faixa positiva (alteração veloz) ou negativa (alteração lenta). [...] Nessa perspectiva, emoções e sentimentos são os sensores para o encontro, ou falta dele, entre a natureza e as circunstâncias. E por natureza refiro-me tanto à natureza que herdamos enquanto conjunto de adaptações geneticamente estabelecidas, como à natureza que adquirimos por via do desenvolvimento individual através de interações com o nosso ambiente social, quer de forma consciente e voluntária, quer de forma inconsciente e involuntária.
Os sentimentos, juntamente com as emoções que os originam, não são um luxo. Servem de guias internos e ajudam-nos a comunicar aos outros sinais que também os podem guiar. E os sentimentos não são nem intangíveis nem ilusórios. Ao contrário da opinião científica tradicional, são precisamente tão cognitivos como qualquer outra percepção. São o resultado de uma curiosa organização fisiológica que transformou o cérebro no público cativo das atividades teatrais do corpo.
Os sentimentos permitem-nos entrever o organismo em plena agitação biológica, vislumbrar alguns mecanismos da própria vida no desempenho das suas tarefas. Se não fosse a possibilidade de sentir os estados do corpo, que estão inerentemente destinados a ser dolorosos ou aprazíveis, não haveria sofrimento ou felicidade, desejo ou misericórdia, tragédia ou glória na condição humana.
[...] Descobrir que um certo sentimento depende da atividade num determinado número de sistemas cerebrais específicos em interação com uma série de órgãos corporais não diminui o estatuto desse sentimento enquanto fenômeno humano. Tampouco a angústia ou a sublimidade que o amor ou a arte podem proporcionar são desvalorizadas pela compreensão de alguns dos diversos processos biológicos que fazem desses sentimentos o que eles são. Passa-se precisamente o inverso: o nosso maravilhamento aumenta perante os intricados mecanismos que tornam tal magia possível. A emoção e os sentimentos constituem a base daquilo que os seres humanos têm descrito há milênios como alma ou espírito humano.
Este livro compreende ainda um terceiro tema relacionado com os anteriores: a perspectiva de que o corpo, tal como é representado no cérebro, pode constituir o quadro de referência indispensável para os processos neurais que experienciamos como sendo a mente. O nosso próprio organismo, e não uma realidade externa absoluta, é utilizado como referência de base para as interpretações que fazemos do mundo que nos rodeia e para a construção do permanente sentido de subjetividade que é parte essencial de nossas experiências. De acordo com essa perspectiva, os nossos mais refinados pensamentos e as nossas melhores ações, as nossas maiores alegrias e as nossas mais profundas mágoas usam o corpo como instrumento de aferição. Por mais surpreendente que pareça, a mente existe dentro de um organismo integrado e para ele; as nossas mentes não seriam o que são se não existisse uma interação entre o corpo e o cérebro durante o processo evolutivo, o desenvolvimento individual e no momento atual. A mente teve primeiro de se ocupar do corpo, ou nunca teria existido.
De acordo com a referência de base que o corpo constantemente lhe fornece, a mente pode então ocupar-se de muitas outras coisas, reais e imaginárias. Essa ideia encontra-se ancorada nas seguintes afirmações: 1) o cérebro humano e o resto do corpo constituem um organismo indissociável, formando um conjunto integrado por meio de circuitos reguladores bioquímicos e neurológicos mutuamente interativos (incluindo componentes endócrinos, imunológicos e neurais autônomos); 2) o organismo interage com o ambiente como um conjunto: a interação não é nem exclusivamente do corpo nem do cérebro; 3) as operações fisiológicas que denominamos por mente derivam desse conjunto estrutural e funcional e não apenas do cérebro: os fenômenos mentais só podem ser cabalmente compreendidos no contexto de um organismo em interação com o ambiente que o rodeia.
O fato de o ambiente ser, em parte, um produto da atividade do próprio organismo apenas coloca ainda mais em destaque a complexidade das interações que devemos ter em conta. Não é habitual falar de organismos quando se fala sobre cérebro e mente. Tem sido tão óbvio que a mente surge da atividade dos neurônios que apenas se fala desses como se o seu funcionamento pudesse ser independente do funcionamento do resto do organismo. Mas, à medida que fui investigando perturbações da memória, da linguagem e do raciocínio em diferentes seres humanos com lesões cerebrais, a ideia de que a atividade mental, dos seus aspectos mais simples aos mais sublimes, requer um cérebro e um corpo propriamente dito tornou-se notoriamente inescapável.
Em relação ao cérebro, o corpo em sentido estrito não se limita a fornecer sustento e modulação: fornece, também, um tema básico para as representações cerebrais. [...] Nesta perspectiva, o amor, o ódio e a angústia, as qualidades de bondade e crueldade, a solução planificada de um problema científico ou a criação de um novo artefato, todos eles têm por base os acontecimentos neurais que ocorrem dentro de um cérebro, desde que esse cérebro tenha estado e esteja nesse momento interagindo com o seu corpo. A alma respira através do corpo, e o sofrimento, quer comece no corpo ou numa imagem mental, acontece na carne.
[...] A esta altura, é provável que o leitor já tenha descoberto que essa conversa não se debruçou sobre Descartes nem sobre a filosofia, embora tenha sido por certo acerca da mente, do cérebro e do corpo. Estamos sob o signo de Descartes, visto não existir forma de tratar tais temas sem evocar a figura emblemática que moldou a abordagem mais difundida respeitante à relação mente-corpo.
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